Vocações
Luís Fernando Veríssimo.
Todos diziam que a Leninha, quando crescesse, ia ser médica. Passava horas brincando de médico com as bonecas. Só que, ao contrário de outras crianças, quando largou as bonecas, não perdeu a mania. A primeira vez que tocou no rosto do namorado foi para ver se estava com febre. Só na segunda é que foi com carinho. Ia porque ia ser médica. Só tinha uma coisa. Não podia ver sangue. 
“Mas, Leninha, como é que...” 
“Deixa que eu me arranjo.” 
Não é que ela tivesse nojo de sangue. Desmaiava. Não podia ver carne malpassada. Ou ketchup. Um arranhãozinho era o bastante para derrubá-la. Se o arranhão fosse em outra pessoa ela corria para socorrê-la – era o instinto médico –, mas botava o curativo com o rosto virado. 
“Acertei? Acertei?” 
“Acertou o joelho. Só que é na outra perna!” 
Mas fez o vestibular para medicina, passou e preparou-se para começar o curso. 
“E as aulas de Anatomia, Leninha? Os cadáveres?” 
“Deixa que eu me arranjo.” 
Fez um trato com a Olga, colega desde o secundário. Quando abrissem um cadáver, fecharia os olhos. A 
Olga descreveria tudo para ela. 
“Agora estão no fígado. Tem uma cor meio...” 
“Por favor. Sem detalhes.” 
Conseguiu fazer todo o curso de medicina sem ver uma gota de sangue. Houve momentos em que precisou explicar os olhos fechados. 
“É concentração, professor.” 
Mas se formou. Hoje é médica, de sucesso. Não na cirurgia, claro. Se bem que chegou a pensar em convidar a Olga para fazerem uma dupla cirúrgica, ela operando com o rosto virado e a Olga dando as coordenadas. 
“Mais para a esquerda... Aí. Agora corta!” 
Está feliz. Inclusive se casou, pois encontrou uma alma gêmea. Foi num aeroporto. No bar onde foi tomar um cafezinho enquanto esperava a chamada para o embarque puxou conversa com um homem que parecia muito nervoso. 
“Algum problema?” – perguntou, pronta para medicá-lo. 
“Não” – tentou sorrir o homem. “É o avião...” 
“Você tem medo de voar?” 
“Pavor. Sempre tive.” 
“Então por que voa?” 
“Na minha profissão é preciso.” 
“Qual é a sua profissão?” 
“Piloto.” 
Casaram-se uma semana depois.