Texto para a questão.
RAIZ DA INTOLERÂNCIA
Ninguém representa maior ameaça à liberdade do outro do que quem se considera dono da verdade. E a lógica que conduz da certeza inquestionável ao linchamento do discordante é simples: “se eu estou com a verdade e ele discorda de mim é que ele está com a mentira, e não se pode deixar que a mentira prospere”. Logo, calar o mentiroso (ou o traidor da verdade) é um bem que se faz à pátria ou à humanidade ou a Deus ou ao partido.
Existem verdades de diferentes pesos e, conforme o peso, mais grave ou menos grave será o erro praticado pelo discordante. Por exemplo, se minha verdade consiste em afirmar que o futebol-arte é melhor que o futebol-força, o máximo que pode resultar disso serão algumas tiradas irônicas mas, se estou convencido de que minha seita é a única que incorpora a verdade do Cristo Salvador, aí o discordante está do lado do Diabo, a encarnação do Mal. (…)
Já escrevi aqui, mais de uma vez, que quem aceita a complexidade do real – do mundo, da vida – não pode ser sectário, não pode ser radical em suas convicções. Noutras palavras, só é sectário quem simplifica as coisas, ignora que todo problema contém diversos lados e contradições. Lidar com essa complexidade é, indubitavelmente, difícil e desconfortável; muito mais cômodo é afirmar: “aquele sujeito é um imbecil” — em lugar de tentar entender as suas razões. Isto se vê a todo momento, especialmente nas discussões políticas. É a tática de desqualificação do outro. Em lugar de responder a seus argumentos, afirmo que ele é safado, desonesto, mau-caráter.
Veja bem, quando digo que se deve ser tolerante e que não existem verdades absolutas, não estou pregando o abandono das convicções firmes e das atitudes éticas. Umas e outras devem ser fruto do conhecimento e da reflexão, os quais nos conduzirão inevitavelmente a reconhecer que a realidade excede nossa capacidade de abrangê-la integralmente. O conhecimento e a reflexão nos conduzem à modéstia e à tolerância. Quando perguntaram a Marx qual a virtude intelectual que mais admirava, ele respondeu: a dúvida.
Raiz da intolerância. Ferreira Gullar. Melhores Crônicas. Adaptado.