QUANDO SE PERDOA AOS PAIS
Outro dia saí com uma amiga psicóloga, e nossos encontros sempre rendem bons papos. Um chope aqui, um petisco ali, e a conversa vai rendendo. Tal hora lhe perguntei qual assunto era mais tratado no seu divã.
— Em terapia, um dos momentos mais marcantes é quando o paciente percebe que precisa perdoar aos pais.
A resposta me desarmou. Ficou martelando na minha cabeça. Como assim, perdoar aos pais!? Que mal os heróis infalíveis de nossa infância cometeriam para necessitassem de perdão? Bom, eu nunca fiz terapia, também nunca tinha parado para pensar a respeito do papel de meus pais na formação do que sou hoje, mas esse assunto me saiu como uma bela epifania.
Sou filho de pais jovens. Quando nasci, minha mãe tinha 17 anos, e meu pai,20. E, antes que pensem bobagem, eu não vim ao mundo porque eles foram apressados e quebraram os trâmites da época. Pelo contrário, nasci conforme mandava o figurino: de pais casados e gerado um ano depois do matrimônio. Hoje, vejo uma certa graça em ter sido o primeiro filho de tão jovem casal, pois eu não percebia, mas meus pais e eu crescíamos juntos.
Meu pai lia revista em quadrinhos comigo e gargalhava como se estivesse lendo as maiores piadas do mundo. Outro dia, enquanto aguardava ser atendido em um consultório médico, resolvi folhear uma que estava no meio de cestos de revistas e não vi graça. Será que estou velho e enjoado? Já minha mãe assistia ao programa infantil da época, o Balão Mágico, e curtia ouvir, na rádio ou no nosso toca-discos, as músicas de grupos, como Trem da Alegria ou da própria Xuxa, arriscando até uma coreografia.
Do lado adulto deles, lembro que meu pai sempre foi muito organizado e exigia isso de mim e de meus irmãos. Teve formação militar, então nossas camas e quartos deviam estar sempre muito bem arrumados. Minha mãe orientava a mim e aos meus irmãos de como executar as tarefas simples da casa, por exemplo, lavar pratos, cozinhar, fazer compras... Tanto que, quando me mudei para Fortaleza, não tive dificuldade em me virar sozinho e até estranhei ver alguns amigos, já bem crescidinhos por sinal, tão dependentes de seus pais para desempenhar tarefas domésticas que, para mim, eram básicas de qualquer adulto funcional.
Meus pais eram a personificação de pais corujas e atribuo a eles eu ter uma boa autoestima. Estavam sempre aplaudindo a todos os meus talentos. No lugar de brigar por causa de alguma travessura, procuravam ver graça naquilo que eu fazia, já que eu tinha uma imaginação muito fértil, e curtiam cada descoberta de minhas variadas aptidões. Me lembro de uma situação bem peculiar. Sempre gostei das artes e desenhava e pintava com um certo talento. Meus pais se admiravam com minha capacidade de rabiscar, a olho nu, qualquer imagem em qualquer superfície. Tais aptidões me inspiravam a fazer “obras” paradoxais numa casa.
Pois bem, conseguem imaginar as paredes de um banheiro pintadas com as personagens da Turma da Mônica? Assim era o lá de casa. Um belo dia, acordei inspirado e, como um pequeno Michelangelo, resolvi “dar vida” às paredes do banheiro sem pedir permissão a ninguém. Munido de lápis de cera e canetinhas, dei início à minha inspiração. Meu pai, ao ver a “obra”, fez uma exclamação pela qual julguei que eu ia levar uma surra daquelas. Para minha surpresa, ele me pergunta o que eu tinha contra o Chico Bento, porque era o único que não estava no rol do “afresco”. Acredito que essa reação ocorreu por ainda existir nele o fogo da juventude que consegue ver graça nas situações mais toscas. Essa observação dele hoje me soa como o melhor elogio que eu recebi em toda minha vida.
Os leitores devem estar pensando que quero passar a imagem de que tive pais diferentes dos pacientes de minha amiga psicóloga. Pois digo a vocês que também tive momentos que quis culpá-los por alguma situação com qual não consegui lidar ou por um de meus comportamentos já enraizados em minha personalidade. Sou muito independente e não gosto de pedir ajuda a ninguém. E, analisando bem, esse comportamento vem devido à cobrança de eu ter que ser sempre um bom exemplo para meus irmãos, pois sou o filho mais velho. Isso fez com que eu vivesse me cobrando uma espécie de perfeição, não me permitindo falhar em qualquer situação da vida.
É quase certo que alguns adultos da minha geração concordariam que essa cobrança foi boa para mim, porque me tornou um homem forte e sem mi mi mi, diferente da geração atual que é tão criticada por não saber, muitas vezes, lidar com adversidades e frustações. Porém, confesso que essa suposta “força” me retrai a vontade de reconhecer que, às vezes, errar faz parte do aprender e que, como todo mundo, preciso de colo e cuidados.
Crescer é um processo cruel. Um dia, a gente acorda e percebe que os pais não têm todas as respostas. Que erraram tentando acertar, que o colo ficou mais raro, que a presença deles nem sempre foi do jeito que precisávamos. A maturidade tem me ajudado muito a me portar diferente em relação a vários assuntos. Ao vê-los envelhecendo, ela me deu a capacidade de colocá-los em certos lugares e de enxergá-los como seres de carne e osso, falhos como qualquer ser humano. Por isso me concentro nos acertos, lhes perdoando os vacilos e me apegando às bondades que eles fizeram e me proporcionaram.
Sei que muitos que estão lendo essa crônica não têm ou tiveram relações tão agradáveis com seus genitores, e, por favor, não pensem que estou aqui querendo invalidar as experiências de ninguém em relação a sua criação, pois sei que há pessoas que deveriam ter sido proibidas de trazer filhos ao mundo e que muitas delas foram responsáveis por prejudicá-los emocionalmente. Todavia ter o coração cheio de mágoas, em algum momento, dificulta nossa existência e pesa como uma cruz que se arrasta até o calvário ao qual nunca se chega. Além disso, essa lamentação sempre nos levará a entoar uma cantilena para justificar nossas falhas e medos. Seguir em frente é uma escolha, e acreditem, é a melhor.
Perdoar aos pais é entender que, mesmo sem saber, eles escreveram em nós as primeiras linhas da nossa história. E, ao reler essas linhas, a gente aprende a enxergar não só o erro mas também o esforço de amar com as ferramentas que tinham. Ao terminar essa crônica, me veio, sorrateiramente, um trecho da música do grande Belchior “Ainda somos e vivemos como nossos pais”. Levase um tempo, mas chega o dia que esses versos farão um grande sentido em nossa vida.
ALAN, Victor. Qual o nome de sua saudade? 1ª edição. Belo Horizonte. Editora Epopeia,2025.