Texto 1: Quem Tem Medo da Metonímia?
E da metáfora? E da ironia? Na metonímia, na metáfora e na ironia, transporta-se, como diria Aristóteles, para uma coisa o nome de outra coisa. Essa é a definição aristotélica de metáfora, mas serve bem tanto à metonímia quanto à ironia. Nos três casos, dizemos uma coisa querendo dizer outra.
Por quê? Porque a metáfora é a mãe (uma metáfora) não apenas de todas as figuras de linguagem, mas também de toda a linguagem. As palavras com que designamos as coisas e as pessoas não são nem as coisas nem as pessoas: as palavras estão no lugar das coisas e das pessoas. Logo, as palavras já são metáforas.
A metonímia, foco deste artigo, também substitui um sentido por outro, mas mantendo uma relação de proximidade entre eles. Na metonímia, um termo substitui outro não porque enxergamos semelhança entre os elementos que ambos os termos designam, quando nos expressaríamos através de uma metáfora, mas sim vislumbrando uma relação de contiguidade entre o sentido de um termo e o sentido do termo que o substitui.
Alguns gramáticos dizem que a função principal da linguagem figurada é a de provocar uma surpresa no leitor, fazendo com que ele preste atenção não somente no que o autor diz, mas também em como construiu o texto. Essa observação é interessante, porque mostra que as figuras de linguagem não são apenas enfeites ou ornamentos, mas também despertadores (mais uma metáfora) da consciência dos leitores. A função despertadora das metonímias fica nítida quando percebemos que elas não se restringem a palavras e frases: muitos gestos são igualmente metonímicos. Na cultura árabe, por exemplo, o gesto de mostrar a sola do sapato para outra pessoa implica insulto gravíssimo. A associação metonímica se dá com a sola do sapato, a parte do calçado que encosta na sujeira contida no chão. Por isso, na cultura muçulmana, os sapatos são proibidos de serem utilizados nas mesquitas.
A querida leitora e o querido leitor talvez esperem que eu passe a listar vários exemplos soltos de metonímia. Entretanto, é o que estou tentando não fazer, porque não compreendemos a metonímia e as demais figuras de linguagem, bem como qualquer conteúdo programático, apenas decorando listas de frases soltas e descontextualizadas. A compreensão da metonímia é, na verdade, da ordem da sociologia e da filosofia: ela nos ajuda a fazer perguntas e a estabelecer relações que não são claras a priori. Por esta razão, ao invés de listar exemplos soltos de metonímia, recordo três questões do vestibular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Uerj que abordam a metonímia.
No Exame de Qualificação 2020, no qual o livro Hora de alimentar serpentes, da escritora ítalo-brasileira Marina Colasanti, era a leitura indicada, uma das questões partia do pequeno conto da autora intitulado “Para começar”: Desejou ter a beleza de uma árvore frondosa tatuada nas costas, copa espraiada sobre os ombros. Temendo, porém, o longo sofrimento imposto pelas agulhas, mandou tatuar na base da coluna, bem na base, a mínima semente. Sobre esse pequeno conto, se perguntava: “Na narrativa, o desejo inicial e a decisão final do personagem podem ser relacionados por meio da seguinte figura de linguagem: (A) metonímia (B) hipérbole (C) antítese (D) ironia”.
O comentário da banca examinadora, a respeito dessa questão, foi o seguinte: “A metonímia é a figura de linguagem que toma a parte pelo todo ou o todo pela parte, numa relação de contiguidade. É esta relação metonímica que se estabelece na narrativa: o desejo inicial do personagem era tatuar a árvore, mas sua decisão final foi a de tatuar uma semente. Dessa forma, a árvore representa o todo do qual a semente é uma parte.” Os candidatos deveriam reparar que a relação metonímica não se estabelece em uma frase qualquer que possa ser retirada do texto e do contexto, e sim na própria narrativa. O personagem, com medo da dor no processo de tatuagem de uma árvore frondosa nas costas, prefere tatuar na base da coluna uma pequena semente, ou seja, a semente da árvore que ele desejava tatuada nas suas costas. Fica implícita, na narrativa, a esperança de que a tatuagem da árvore cresça sozinha, sem agulhas, a partir da tatuagem da semente.
No Exame Único 2023, no qual o romance Niketche: uma história de poligamia, da escritora moçambicana Paulina Chiziane, era a leitura indicada, uma das questões perguntava: “As mulheres de Tony pertencem a diferentes grupos étnicos. Rami é ronga; Ju é changana; Lu é sena; Saly é maconde; Mauá é macua. Em relação a essa diversidade, na representação cultural de Moçambique, cada uma dessas mulheres pode ser compreendida pela seguinte figura de linguagem: (A) antítese (B) hipérbole (C) metonímia (D) eufemismo”.
O comentário da banca examinadora, a respeito dessa questão, foi o seguinte: “(...) Em Niketche, todo o conflito se desenvolve em torno de Tony e suas cinco mulheres, que vêm de diferentes partes de Moçambique, país fortemente marcado pela pluralidade étnica. Pode-se dizer que Moçambique é apresentado, portanto, por essas cinco personagens, que formam uma espécie de mosaico? Sim, cada uma delas representa uma etnia, e as particularidades culturais e geográficas desses grupos são debatidas, ao longo da narrativa, por meio da ação das próprias personagens.” Novamente, os candidatos precisariam reparar que a relação metonímica não se estabelece em uma frase qualquer que pudesse ser retirada do romance, mas sim na função das personagens na própria narrativa.
Por fim, no Exame de Qualificação 2025, no qual o romance Quincas Borba, de Machado de Assis, era a leitura indicada, uma das questões perguntava: “Em Quincas Borba, os personagens se movimentam no contexto de emergência do capitalismo no Brasil. Em relação a esse contexto, o protagonista Rubião pode ser melhor identificado pela seguinte figura de linguagem: (A) antítese (B) hipérbole (C) eufemismo (D) metonímia”.
O comentário da banca examinadora, a respeito dessa questão, foi o seguinte: “(...) Machado de Assis mostra, desde o primeiro parágrafo da narrativa, que seus personagens se movem no contexto do surgimento do capitalismo no Brasil. Como a metonímia é a figura de linguagem em que a parte pode representar o todo, Rubião, o personagem principal, é ele mesmo uma metonímia desse capitalismo emergente, a saber, o indivíduo que representa todos os capitalistas e todo o capitalismo. Com seu fascínio pela ostentação e seu afã de enriquecer a qualquer custo e o mais rápido possível, Rubião encarna não apenas as benesses do capitalismo, como também a possibilidade de ascensão social de um indivíduo comum, mas também, e principalmente, as mazelas desse mesmo capitalismo – como, por exemplo, a possibilidade de queda desse mesmo indivíduo.
(...)”
Esta questão se mostra semelhante àquela que vimos a respeito do romance de Paulina Chiziane. Nela, os candidatos também precisariam reparar que a relação metonímica não se estabelece em uma frase qualquer que possa ser retirada do romance, mas sim na função dos personagens na própria narrativa. Comprova-se, dessa maneira, que a compreensão da metonímia é, sim, de ordem mais ampla, abrangendo da ética – isto é, a reflexão sobre valores morais – à metafísica – isto é, à reflexão sobre a essência das coisas e das pessoas.
GUSTAVO BERNARDO
Adaptado de revista.vestibular.uerj.br.
No 4º parágrafo, o autor emprega o verbo “implicar” na forma transitiva direta, variante considerada de prestígio. É comum, porém, o uso desse verbo também na forma transitiva indireta, regido pela preposição “em”.
Trata-se de um caso de variação relacionado ao seguinte plano de organização da língua: